Ensaio: O olho mais azul / Toni Morrison; tradução: Manoel Paulo Ferreira; com posfácio da autora. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Análise crítica sobre racismo, padrões de beleza ocidentais e a infância negra, escrita por Kahena Bizzoto a partir da obra “O olho mais azul” de Toni Morrison. O texto aborda como o preconceito e a lógica colonial afetam a autoestima de meninas negras, conectando as realidades dos Estados Unidos e do Brasil. Uma reflexão necessária para discutir privilégio, representatividade e os direitos da comunidade negra.

Ensaio: O olho mais azul / Toni Morrison; tradução: Manoel Paulo Ferreira; com posfácio da autora. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Ensaio: O olho mais azul / Toni Morrison; tradução: Manoel Paulo Ferreira; com posfácio da autora. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003. (Foto: Reprodução)

O mundo ocidental não dá aos homens negros a mesma cortesia que dá aos homens brancos, muito menos às mulheres negras a mesma cortesia que dá às mulheres brancas. É uma questão de privilégio.  Olhos azuis, lábios finos e avermelhados, pescoços longos, pernas finas, nariz fino, pele branca. Belo. A beleza branca é inigualável, você possui ou não. A ingenuidade das crianças apresentadas no livro “O olho mais azul” é encantadora, a forma que encontram para explicar as coisas e a maneira diferenciada de entender o preconceito e a diferenciação entre as crianças negras e brancas. A noção de binariedade do ocidente é explicada de uma forma sútil, entre o belo e feio. 
Claudia, uma criança negra, a narradora e personagem principal, ao ganhar uma boneca de nariz arrebitado, olhos de vidro azuis e cabelos loiros, a princípio se sente incomodada, com vontade de desmembrar a boneca, saber do material de que é feita, de destruí-las. Essa mesma vontade de destruição e repulsa às bonecas brancas era também transferida para  meninas brancas, a quem eram voltadas todas as atenções, olhares meigos e elogios de onde viviam. 
Após um tempo essa raiva é substituída por amor e admiração a esses estereótipos, a essas meninas e ícones perfeitos, de bochechas avermelhadas e “pele limpa”. No livro, crianças negras desejam os cabelos lisos, narizes mais finos e rejeitam a própria natureza de cabelos crespos e cachos, lábios grandes e bundas maiores que as das mulheres brancas, que as tornam objeto de desejos dos homens, mas apenas para prazer sexual, quase nunca para o amor genuíno. A mídia impulsiona esses estereótipos e contribui para a compra de utensílios de modificação corporal, como maquiagens, produtos que alisam os cabelos e clareiam a pele.     
Segundo a reprodução de beleza ocidental brancos são belos, os negros feios, os mulatos podem ser feios ou bonitos, dependendo da tonalidade de sua pele, da cor dos seus olhos e delicadeza de seus traços, mas nunca se igualarão à pureza da branquitude. Os brancos são limpos, negros sujos. Uma lógica dual e desumanizadora, simples assim, o negro é ofensivo, inferior, o branco é melhor, sempre. 
Porém, onde isso está escrito, quem disse que é essa é a verdade, quem testou e comprovou, quem desumanizou as pessoas pela cor da sua pele? Pelos seus traços físicos? Não é questão de culpabilizar um indivíduo mas sim de contestação e afrontamento da lógica colonial de beleza branca. 
Toni Morrison levanta essas importantes questões através da literatura, do olhar de uma criança negra, que apesar de não compreender toda a complexidade da dominação racial e do processo de colonização, compreende bem seus efeitos em sua pele e na vida de sua família. 

Pecola

Pecola, a personagem que a todo momento do livro “O olho mais azul” é chamada de feia, por adultos e crianças, apesar de ainda ser uma criança Pecola já desenvolve por si um não reconhecimento do belo e a interiorização de seus sentimentos, se fechando e se tornando cada vez mais inferiorizada, por homens, mulheres, garotos e garotas da escola. Ao acreditar que possuía olhos azuis, Pecola se sente diferente, poderosa, bonita, esperançosa, sente que as pessoas a olham diferente por possuir os olhos considerados belos e azuis, os mais azuis que qualquer outro.   
Ao nascer, Pecola foi considerada feia pela Sra Bredlove que esperava um outro alguém que fora idealizado em sua cabeça. A garotinha de nada tinha culpa, mas nascera feia. A medida em que crescera e fora para a escola era diferenciada, sentava-se sozinha na classe, era invisibilizada pelos professores e colegas de turma. Era motivo de piada e seu nome era utilizado para execuções de brincadeiras de mau gosto. 
Em casa ajudava a mãe, o pai vivia bêbado, e o irmão sempre fugia de casa, deixando-a sozinha novamente. A personagem materializa os medos, as vivências de muitas mulheres negras que vivem em diáspora, que desde criança já sofreram a dor de ser diferenciada, não aceita, criança desajustada, fora dos padrões ideais, negra e pobre. Na personagem mostra-se o lado mais ingênuo da mulher negra, que consegue passar pelas particularidades e desigualdades a que lhe são infringidas e ainda assim, enfrentar as dificuldades da vida. 
O livro “O olho mais azul” de Toni Morrison uma mulher negra, que retrata a trajetória de meninas que se tornam mulheres que por muitos são inferiorizadas, objetificadas, marcadas pela vida que levam, moldadas para serem mães e empregadas domésticas de famílias brancas, dando à essas famílias para quem dedicam grande parte de suas vidas a atenção que muitas vezes os próprios filhos não recebem, tratamentos especializados, diferenciados, afinal, os patrões são brancos, ricos, considerados bonitos e modelos ideais de família. 
Essas mulheres lavam, passam, organizam, cozinham, cuidam dos filhos de outras pessoas, dão carinho, e ao voltarem para casa encontram maridos incompreensivos, filhos sedentos de atenção e muitas vezes que aprendem a reprimir igualmente seus sentimentos. 
Sem espaço algum para si mesmas, elas escondem a própria personalidade, reclamam aos berros, executam todo o trabalho doméstico novamente, alimentando, lavando, secando, educando os próprios filhos, preparando-os para a vida de maneira dura e rígida, da mesma forma que fora criada, educada para obedecer aos brancos.
É bem retratado esse tratamento que as crianças negras foram submetidas pelos pais quando lemos em “O olho mais azul” passagens escritas por Claudia, a narradora, relatando a forma pela qual a mãe monologava e surrava as filhas como método de correção; ou na passagem em que a Sra Bredlove, sua mãe, encontra a bagunça que filha e as amigas haviam feito na cozinha e as repreende violentamente, contrastando com a forma com que trata a criança branca filha dos patrões. Crianças criadas para suportar a dor da rejeição de uma sociedade que escravizou seus antepassados e necessitará da sua força de trabalho no futuro. 
“O olho mais azul” é um livro difícil de ser finalizado, pela brutalidade da realidade que açoita a vida de muitas mulheres negras. Ainda assim, seu texto expressa a ingenuidade e sensibilidade de uma criança negra, que tem sonhos e o desejo de uma infância feliz. Infelizmente o direito à infância é roubado pelo racismo diário vivido por pessoas negras estadunidenses no período de apartheid racial. Apesar de retratar uma realidade fisicamente distante da brasileira, deixa reflexões importantes e faz com que nós, mulheres negras no Brasil, nos identifiquemos com a história de Cláudia e Pecola, que queriam apenas serem vistas, aceitas, consideradas belas pela sociedade, poderem viver sem o peso do racismo estampado em suas peles. 
O que une essa história ao Brasil é o direito à vida e à infância, o que infelizmente o Estado Brasileiro não tem garantido à nossa juventude, muito pelo contrário, às tem levado pelo gatilho puxado pela sua própria mão. E nós, comunidade negra, o que faremos pela vida de nossas crianças? 

Esse texto foi desenvolvido para a disciplina: Pensamento Negro Contemporâneo do Decanato de Extensão da Universidade de Brasília, ministrada pela Professora Ana Luiza Pinheiro Flauzina no ano de 2015.

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